quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Uma menina feita de José

Mariana Clark

(do livro "Menina feita de José", ed. Armazém de Idéias, 2007).

Foi como o dia em que te conheci e que tudo era muito recente. Minhas mãos, meus olhos, meu nariz colorido de tinta. Você era aquele senhor por vezes doce, por vezes duro, assim como foram também as pessoas que amei depois de você. Foram seus olhos que primeiro me viram e também te vi, é certo que sim, mas não sabia ainda o que era você ou o que era o mundo.

E assim, menina medrosa que fui sempre, cresci. Cresci vendo os anos passando muito mais rápido para você do que para mim. Vieram a bengala e os sapatos que não escorregam, enquanto eu queria correr descalça, eu queria alcançar o mundo. Você me mostrou as rosas, os jardins, me chamou de menina, me disse bonita, me disse levada. Não gostava de mim todas as horas. Aprendi com você, então, que paciência não tinha a ver com o amor. O amor era outra coisa.

Menina levada que fui, que fazia coisas com as quais você se incomodava. Os barulhos, as bolas, os pensamentos que iam e vinham sobre as bonecas, as estrelas e a vida. Mostrava as notícias do jornal, você inconformado dizendo que o mundo se perdeu, se enlouqueceu, e o governo que fazia coisas inacreditáveis. No seu tempo não era assim, você que veio de Paraíso. E eu, que vim do mundo da cidade grande, sem saber o que era ser do interior ou ter as mãos frias. Seu casaco de inverno mesmo que no verão, minhas regatas de verão mesmo que na primavera. Você, um friorento a implicar com todos os ventos, mesmo os que muito discretamente tentavam achar uma frestinha. Eu e um calor enorme que habitava dentro de mim.

E eu te olhava. E será que você acreditava em Deus? E eu te pensava. E será que você sabia de todas as recordações que contava? Será que era só fechar os olhos e ver tudo de novo? E como era sentir saudade de alguém, como era não ver a pessoa, como era querer que a pessoa pulasse de dentro dos pensamentos para o mundo e não conseguir?

E senti medo. Medo por mim e por você. Medo de você ir para a esquerda, e eu para a direita. Medo de você preferir ir para as rosas, e eu para a vida. Medo de você ir, e eu ficar. Medo. Era só fechar os olhos. E medo. Era só fluir as palavras. E medo. Era só um pensamento pensar. E medo. Houve época em que senti medo de tudo perto de você. Época em que cresci, e eu que, quando criança menor, achava que crescer era só esticar os braços, era só as pernas ficarem maiores, era só mais um giz marcado atrás da porta. Era só ficar maior que a sua bengala. Era só atingir o pote em cima da estante, poder descer as escadas sozinha e ir comprar o pão na esquina.

E, assim, mocinha que fui ficando mas para sempre sua menina, fui vendo as mãos do tempo fazendo coisas. Envelhecendo os móveis, baqueando as pernas, dando mais dor no frio, encurvando as costas, fazendo goteira no telhado, ressecando as rosas do jardim. E o vento que não pára. O tempo foi vindo sem respeitar as placas para parar nem os pedidos, nem as súplicas. Que passe mais rápido para mim e não para você, pedi. Eu uso as bengalas, eu uso os sapatos que não escorregam, eu encurvo as costas, mas nada. Eu ainda uma mocinha e você um senhor já há muitos janeiros por aqui. E vieram, então, os passarinhos que voavam à sua frente e te encantavam, mas levavam suas histórias, suas memórias, meu nome e o seu.

Uma hora, então, em um sábado de manhã, e era um sábado bonito com rosas e sol, você disse então que ia. Eu já havia lhe beijado na testa e disse para você ir. E nos despedimos assim. Sem mais delongas, que não somos disso. Sem choros exagerados, que não somos disso. E se me perguntam do que sou feita quando fico triste e confusa, digo que sou feita de você, uma menina feita de você.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Uma carta para vocês

Mariana Clark

Belo Horizonte, 10 de agosto de 2009

Alguns dias, como hoje, eu acordo lembrando de todas as mulheres que eu tive. E as acho espetaculares e não me lembro porquê motivo mesmo que tudo acabou. E se aquela roupinha de bebê realmente servisse ou se as palavras de mágoa não tivessem sido ditas. Meu jeito impulsivo me permitisse ser mais racional e, em vez de raiva, sempre trouxesse flores. Os dias, as personagens dessa minha vida cotidiana, tudo ficasse de novo com aquele ar leve de quando se está apaixonado. Mesmo que sempre tenham me querido um homem que não pude ser e, assim, menos satisfação e mais amor. Não sei o que aquelas mulheres viram em mim, talvez minha barba mal feita ou meu sorriso. A voz doce, o olhar de quem as amou profundamente. E um desejo, assim que bate forte no peito, de que eu soubesse disso naquela época. Muito antes de as ferir como fiz tantas vezes ou de dizer que nunca mais mesmo tendo jurado amor eterno. E as roupas voando pela janela como se eu fosse algum tipo de marginal e eu pudesse me defender que não, o meu erro foi ter desejado demais. Tanto tempo e tanta coisa feita em nome dos sentimentos e assim, hoje, essa ressaca e essa vontade de dizer a elas que se sou hoje esse homem mais ou menos certo, ligeiramente incorreto, é porque não foram em vão todas aquelas discussões de relacionamento. Eu as escutei mesmo que tenha dito: "bobagem". Ou coisa pior: "vai se fuder". Ou então: "quero alguém tão diferente de você que não sei nem explicar". Não falo para uma, falo para todas e mesmo que corra o risco, e eu sei que corro, de parecer um cafageste as resumindo todas elas, as minhas mulheres, em uma só enquanto eu sei que isso não se faz. Não se resume as mulheres. E nem minhas são mais mesmo que eu pense que sim. Ninguém faz aquele sexo como eu ou as toca profundamente ou olha de rabo de olho. Não, não. As proibo de achar o homem da vida delas depois de mim. E, nessa coisa infantil, vou me perdendo como as perdi. E posso culpar a vida, sempre injusta, ou o tempo ou tudo aquilo que nos separou. Uma viagem, um pedido, mais do que eu podia oferecer ou mesmo e hoje, com uma lucidez que me espanta, vejo tudo indo embora. A casa na praia, o apartamento em Moema, os nomes dos bebês (e eu sempre fiz questão de Carolina se mulher) e os filhotes de nossos cachorros. Tudo foi e passou e o que me restou: essa ressaca, a dor de cabeça, a vontade de dormir.

Luiz Henrique
A mulher e o trem
Mariana Clark

Falei quando não havia ninguém além de nós. Mudei o tom da voz para que você me escutasse de novo. E o que nascesse do encontro entre eu e você fosse mais do que o que sempre resta da lembrança. Quando fecho os olhos e penso que vinha por detrás das montanhas, aquelas das Minas onde eu morava e do que nunca vou deixar de ser: aquela da cidade pequena. O barulho do trem que trazia e levava saudade. Trem que em Minas também é cadeira, porta e cortina. Aquilo que o Geraldo da esquina é e muito do feio. Trem em que nos embarcamos e nos perdemos. Quis saber de você, eu lá e em tantas você também. Seus gestos, seu cabelo e a sua mão que, quando pegava na minha de relance, suspirava para não deixar dúvida se direita ou esquerda.É o que busco sempre, o que me acontecia sem nem ao menos saber como um ponto despercebido, que a vista não alcança. Meu coração, por Deus, meu coração batendo em disparada, e vinha algo do qual eu não tinha controle e me tomava como que inteira, como que mulher. E sentia até mesmo o vento que se deslocava, as árvores que ficavam mais verdes, e vinha macio por detrás de caminhos tortuosos, como os da vida, e fazia barulho como se não importasse com quem quisesse ou não ouvir. Eu, mulher mineira de chapéu que não se usa mais. Ele, o trem. Em sua fotografia, só me resta imaginar. O terno e os botões que não se foram, o olhar que depois vi em seu filho. Quis saber de você, e ele também, enquanto o via, eu naquele trem em que tantas vezes você também. Vínhamos nós dois por caminhos tortuosos como os da vida que me moldou do encontro entre o que sobrou de nós e a lembrança que volta toda vez que a noite é mais escura. Trem que passava por tantas cidades, e pessoas que vinham e voltavam, aquelas das Minas onde eu morava, as da cidade pequena, outras da beira da estrada. Havia quem se alegrasse com o apito que fez ruído no meu coração e silêncio. Primeiro alegria. Depois barulho. Silêncio. Vazio da vida sem você. Aquilo que ficou primeiro em meu ventre e depois correndo pelo quintal. Há quem tenha seus olhos sem nunca ter te visto e apenas imaginar como era. E eu conto que era por ele que ela esperava de saia rodada e blusa com botões azuis, as pernas de pudor. Ela, mulher mineira. Ele, o trem. Vinha macio por detrás da Serra. Conto em uma história de ninar mais do que a mim mesma nos momentos em que penso que fui eu quem tive a saia rodada, a mim pertencem as pernas de pudor. Ela gostava dele, e ele sabia, ela já havia dito. E falo com a voz mansa de quem fala a uma criança palavras duras de quem não se perdoou.Tantas vezes, naquela mesma estação. Tantas vezes, pensamentos que iam e vinham sobre como é a vida, e ela sempre é de alguma maneira, o mesmo trem que o trouxe e o levou. Me deixou mais do que aquilo que ficou no meu ventre, quem tem seus olhos, aquilo que me perturba por querer saber quem é você. E eu sem poder dizer nada por não saber mais do que ele. E ainda o espero na estação caso queira me encontrar. Foi na estação que virei caso da cidade, a mulher de saia rodada que esperava o trem de várias horas sem tempo e destino certos. Chegaram e partiram vários apitos, alegria e tristeza. E, assim, na cadência do trem que partia e chegava, assim mesmo fui me levando por esse movimento intenso, essa magia, essa falta de você que já me é costume, maneira de viver. E fica o apito como tudo aquilo que eu não posso pegar, mas vem de longe e me golpeia. E eu escuto, escuto todo dia.